Paróquia São Francisco de Assis

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Hoje nasceu para nós um Salvador!

Estimados irmãos e irmãs, o anúncio do anjo que acabamos de ouvir no Evangelho de São Lucas e cantar no refrão do Salmo, comemora o nascimento de um Salvador. Se nasce um Salvador, é porque a missão de salvar está no centro da vinda do Senhor a nós, faz parte do núcleo do Mistério da Encarnação. E é por este motivo que hoje proponho três perguntas para guiar nossa breve reflexão nesta noite de Natal. “Hoje nasceu para nós um Salvador”!  Para Salvar quem? Salvar de que? Salvar para que?

A primeira pergunta não é tão difícil, afinal já vem respondida na própria afirmação do anjo. O Salvador nasceu para nós, ele vem nos salvar. Muito importante perceber o senso de coletividade que aparece explícito na linguagem: um Salvador para nós, ou seja, para mim, para quem está ao meu lado e também mais distante. Para os poucos que eu conheço e com quem me relaciono e para outros tantos de quem nem mesmo sei da existência. Para quem pensa igual a mim e atende minhas expectativas, mas também para quem é diferente, com quem eu não concordo em quase nada e também para alguém com quem eu não me simpatizo. Para aqueles com quem me relaciono bem e também outros tantos que me causam certo incômodo, que me abordam na entrada da padaria, pedindo um trocado para o pão, que desejam lavar o para-brisa do carro no farol ou que deixam por onde passa o mau cheiro de quem há semanas ou meses não toma banho porque não têm lugar onde tomar ou porque se acostumaram a viver assim. O NÓS, para Deus, é sempre amplo e inclusivo, capaz de acolher as diferenças e promover uma síntese de amor que, à medida que se concretiza, torna-nos mais próximos do Reino de Deus. Se não tivermos o carinho e a sensibilidade e ampliarmos nossa compreensão do que significa a Salvação, corremos o risco de não receber no aconchego de nossos braços o Menino que deseja ser cuidado e acolhido por nós.

A segunda questão… Esta pode nos trazer algumas surpresas… Salvar-nos de que, ou de quem?  Hoje vou me ater a um aspecto da salvação que se faz essencial e nem sempre é muito destacado. Para salvar-nos de nós mesmos. Mas como? Até mesmo quando estou a sós e me sinto seguro, ainda preciso ser salvo de mim mesmo? Pois é, parece estranho, mas o próprio São Paulo, no curto trecho da Carta a Tito que ouvimos, nos chama a atenção: “A graça de Deus se manifestou trazendo salvação para todos os homens. Ela nos ensina a abandonar a impiedade e as paixões mundanas e a viver neste mundo com equilíbrio, justiça e piedade”. Abandonar a impiedade e as paixões mundanas que cada um traz dentro de si e que não devem necessariamente serem exorcizadas, arrancadas por um processo violento mas, ao contrário, digeridas, integradas em nossa própria história.

Sobre este trabalho de digestão – aliás esta é uma noite que exige muito de nosso sistema digestivo – cito um trecho do livro Fronteiras da Inteligência, do Rabino Nilton Bonder:

 

“Um dos pilares da ética e do Humanismo no Ocidente é a frase bíblica ‘Ama teu próximo como a ti mesmo’. Há um aspecto dessa frase, no entanto – diz o rabino – que me parece particularmente importante. Trata-se de possibilidade de se ler no hebraico original, no lugar de próximo, uma outra palavra de grafia idêntica e cujo significado é ‘ruim’. A leitura da frase seria então: ‘Ama o teu ruim como a ti mesmo’. Aprender a amar o que há de ‘ruim’ em nós como parte de nós mesmos não é uma apologia à complacência, à resignação ou à imperfeição. É um ato de ‘endorcismo’, de integração, sem o qual não há tolerância. Perceber que a palavra ‘outro’ (próximo) tem a mesma raiz que a palavra ‘ruim’ é entender um pouco na nossa psique. O que é diferente é automaticamente visto como ‘ruim’. Verdadeiramente amar o ‘outro’ é tão difícil e violento como se propuséssemos amar o ruim ou o imperfeito. O exorcismo, o ato de querer excluir e erradicar o ‘ruim’ significa verdadeiramente querer erradicar o ‘outro’. Como poderemos tolerar os outros e amá-los, se não toleramos em nós o que é outro, o que é fora dos padrões e das expectativas? Ser bom só é possível para quem realiza o trabalho espiritual de absorver seu Satan – seu próprio ruim ou seu próprio outro. E ser bom nunca é para o outro, mas para si e para todos”.

Ainda bem, irmãos e irmãs, que neste processo de “endorcismo” e integração contamos com aquele que nasceu entre nós, com o “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai dos tempos futuros, Príncipe da paz”, nas palavras do Profeta Isaías.

A terceira indagação: Salvar para quê? Quanto a esta pergunta, precisamos ter cuidado para não buscar respondê-la apenas de modo utilitário. Buscar vantagens imediatas ou soluções mágicas no Mistério da Encarnação pode nos levar a certas decepções. Afinal, não se trata de um projeto baseado apenas na razão, no planejamento, nos cálculos e no sucesso, mas de uma iniciativa inédita e ousada da parte de Deus, fazendo-se pequeno, frágil e pobre para ser próximo, para estar conosco, conforme nos recorda o Papa Francisco na belíssima Carta Apostólica que no primeiro dia deste mês o Santo Padre escreveu sobre o presépio:

“Por que motivo suscita o Presépio tanto enlevo e nos comove? Antes de mais nada, porque manifesta a ternura de Deus. Ele, o Criador do universo, abaixa-Se até à nossa pequenez. O dom da vida, sempre misterioso para nós, fascina-nos ainda mais ao vermos que Aquele que nasceu de Maria é a fonte e o sustento de toda a vida. Em Jesus, o Pai deu-nos um irmão, que vem procurar-nos quando estamos desorientados e perdemos o rumo, e um amigo fiel, que está sempre ao nosso lado; deu-nos o seu Filho, que nos perdoa e levanta do pecado. De modo particular, desde a sua origem franciscana, o Presépio é um convite a ‘sentir’, a ‘tocar’ a pobreza que escolheu, para Si mesmo, o Filho de Deus na sua encarnação, tornando-se assim, implicitamente, um apelo para O seguirmos pelo caminho da humildade, da pobreza, do despojamento, que parte da manjedoura de Belém e leva até à Cruz, e um apelo ainda a encontrá-Lo e servi-Lo, com misericórdia, nos irmãos e irmãs mais necessitados (cf. Mt 25, 31-46)”.

Com sabedoria e profetismo, o Papa Francisco nos dá uma importante pista para respondermos esta última indagação. Deus nos salva para que aprendamos a sermos “salvadores” uns dos outros. Não significa sermos infalíveis, todo-poderosos, portadores de solução para qualquer problema, mas cultivarmos a coragem de sentir na própria carne a dor que sente nosso irmão e de darmos do nosso melhor para o ajudarmos em seu processo de cura das feridas, sejam elas materiais, psicológicas, sociais, emocionais, todas as feridas. É uma atitude corajosa que só conseguimos empreender se tivermos de fato compreendido em sua profundidade o mistério que hoje estamos celebrando.

Em nome de nossa fraternidade franciscana, em nome desta comunidade paroquial de São Francisco da Vila Clementino, desejo a todos um Santo e Feliz Natal. Que a grandeza e a profundidade deste mistério sejam para nós razão suficiente para seguirmos em frente na missão que o Senhor nos confia, de percebemos que a Salvação é para todos, que precisamos em primeiro lugar nos salvar de nós mesmos e, por fim, que Deus deseja e sonha contar conosco para sermos seus fiéis e efetivos colaboradores do Projeto da Salvação.

Hoje nasceu conosco, para nós e em nós um Salvador!

Frei Gustavo W. Medella, OFM
Homilia da Missa da Vigília do Natal do Senhor, 24.12.2019

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