Dias atrás, uma amiga compartilhou, em uma rede social, um momento especial da
aula de artes do filho pequeno. Ele pintava um quadro, mergulhando – literalmente! – na,
experiência artística. As tintas não se limitavam às cerdas dos pincéis: cobriam seu corpo
inteiro. Entre risos divertidos e um compromisso sério com a arte, ele chegou a se deitar,
sobre a tela. Tive a sensação de presenciar os risos e brincadeiras das crianças retratadas
por Portinari, transbordando espontaneidade e vida. A imagem que se fixou em meus olhos também me carregou para uma memória musical: “Aquarela”, de Toquinho: “Numa folha qualquer | Eu desenho um sol amarelo |E com cinco ou seis retas | É fácil fazer um castelo | Com o lápis em torno da mão | E me dou uma luva | E se faço chover | Com dois riscos tenho um guarda-chuva | Se um pinguinho de tinta | Cai num pedacinho azul do papel | Num instante imagino | Uma linda gaivota a voar no céu”.
O amarelo riscado e rabiscado, o pinguinho de tinta no papel, aos olhos de uns
podem parecer nada ou até mesmo erro. É, no entanto, dessas “impossibilidades” frágeis,
que surgem o sol e o voo da gaivota. Isso é esperança: frágil, mas repleta de possibilidades.
“Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas, especialmente o Senhor
Irmão Sol”. Francisco celebra a luz que aquece, ilumina e renova mesmo diante da dor e
da enfermidade. Ele não apenas enxerga o sol; transforma-o em significado, em louvor.
Já Toquinho desenha um sol que não apenas brilha, mas dá início a um mundo de
possibilidades. O sol, na música e no cântico, é mais do que um elemento da criação: é
um símbolo da esperança que insiste em nascer, mesmo em folhas marcadas pela vida.
A vida, como canta Toquinho, é uma aquarela. Às vezes, as tintas escorrem, as cores
se misturam e os traços falham. Mas, como nos ensina Francisco, mesmo nas
imperfeições, há motivo para louvor. O Irmão Sol não ilumina apenas dias perfeitos; ele
brilha em todos os momentos, aquecendo os corações dispostos a enxergar além das
dificuldades.
A vida não permite ensaios nem é feita de precisões. O provérbio “não leve a vida
tão a sério, afinal você não sairá vivo dela”, talvez, nunca tenha feito tanto sentido para
mim até o momento em que vi o filho de minha amiga se tornar um “pincel ambulante”.
Não estou dizendo para se viver de qualquer jeito, muito pelo contrário! Entendi que a
vida precisa tanto de seriedade quanto de leveza – como a arte. Cada momento é um traço
em um papel imaginário, e as cores, formas e texturas representam nossas escolhas,
sonhos e desafios.
Com sua arte espontânea, o pequeno pintor materializou o pedido de Adélia Prado:
“Meu Deus, me dá cinco anos, me dá a mão, me cura de ser grande.” Esse clamor por
uma cura da “seriedade adulta” nos lembra de ver a vida com olhos de esperança: um
traço pequeno que, ao se expandir, forma paisagens infinitas de possibilidades e beleza.
Mesmo em tempos de incerteza e escuridão, é possível criar luz.
Quantos de nós já enfrentamos – ou ainda enfrentamos – momentos em que tudo
parecia impossível: a perda de um ente querido, a luta contra uma doença, crises
financeiras ou emocionais? Em algum momento, conseguimos – ou alguém nos ajudou –
a desenhar um sol amarelo em nosso caderno imaginário: um gesto pequeno, mas capaz
de iluminar realidades sombrias.
O artista Mundano nos ensina com muita sabedoria que precisamos tomar nas mãos
as cinzas que restaram, a lama que ficou depois que a chuva passou e, por entre lágrimas
e esperança, fazer as tintas para pintarmos a vida. Seu mural “Pare a Destruição”, no
centro de São Paulo, retrata uma jovem liderança indígena munduruku Alessandra Korap,
segurando um cartaz com os dizeres: “Pare a destruição, stop the destruction, keep your
promises” (pare a destruição, mantenha suas promessas). As tintas usadas por Mundano
foram criadas a partir das cinzas das queimadas no Brasil em 2024 e da lama das
enchentes do Rio Grande do Sul no mesmo ano.
Transformar esses vestígios em arte, como fez Mundano, é mais do que um gesto
criativo: é um ato de resistência e ressignificação, uma forma de dar novo sentido às
marcas deixadas pelas tempestades e incêndios, tanto no mundo exterior quanto em
nossas vidas. Assim como Francisco encontrou louvor na fragilidade e Toquinho viu
possibilidades no pingo de tinta, somos convidados a olhar para os resíduos do que nos
desafia com olhos de renovação. Cada escolha, cada gesto, pode se tornar um traço de
esperança, uma cor que preenche os vazios ou redesenha caminhos. Porque a vida, mesmo
em sua imperfeição, é uma tela aberta ao novo.
E nós? Do que serão feitas as nossas tintas?
por: Diego Bello Doze, coordenador do CPP