Elói Leclerc : ©2025 Province des frères mineurs de France et Belgique
Elói Leclerc, frade menor francês, se notabilizou por seus escritos sobre
Francisco de Assis. O mais apreciado de seus livros foi “Sabedoria de um Pobre”. O título das linhas que seguem vem de uma outra de suas publicações: “O Cântico das Fontes – O universo fraterno de Francisco de Assis, em tradução do francês para o português, publicado pela Editorial Franciscana de Braga (Portugal), em 1979, tomamos a liberdade de nos apropriar de tal título nesta nossa reflexão, calcada em boa parte neste livro.
Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM
Celebrando as núpcias do céu com a terra, este cântico é verdadeiramente o cântico do homem novo, tocado pela glória de Deus. O cântico do homem reconciliado e salvo (Éloi Leclerc)
Sucedem-se os centenários de fatos e feitos da vida de Francisco de Assis. Já tivemos ocasião de refletir a respeito oitocentos anos da Regra Bulada, do presépio de Greccio e dos Estigmas do Alverne. No ano de 2025 ocorrem os oitocentos anos do Cântico das Criaturas, Cântico do Irmão Sol, Cântico das Fontes, do grande louvor do sol e da lua, da vida em sua plenitude e da morte acolhida como uma irmã. Teremos ocasião de nos deter no sentido deste texto marcado pela reconciliação entre o homem e o mundo. A pessoa de Francisco e sua mensagem cabem bem como luz neste mundo de dilaceramentos e convulsões, onde lobos furiosos percorrem a face da terra a tudo querendo devorar. Mais do que nunca soa uma graça e uma bênção ouvir e repetir esse: “Paz e Bem”. “Esta saudação me revelou o Senhor que disséssemos: O Senhor te dê a paz!” (Test).
Entrando no assunto
Francisco de Assis estava quase completamente cego quando compôs o Cântico. Lançando nesse momento, um olhar de fé ao contemplar as maravilhas da criação, consegue pressentir a presença do Criador que lhes dá significado. Todas as criaturas, espelho das perfeições divinas, são irmãs porque obras e do mesmo autor. Juntas, elas constituem o coro da criação que Francisco contempla, louva. O Poverello exprime delicada gratidão ao Grande Esmoler.
O Cântico é a expressão que recapitula toda uma vida de conformação com Cristo, o Filho bem-amado. A fé do Poverello na paternidade de Deus se transforma num canto de louvor que proclama a fraternidade de todas as criaturas e sua beleza. “Francisco contemplava nas coisas belas, a beleza suprema do Criador e, pelas pegadas que ele deixara impressas nas coisas, ia seguindo o Bem-Amado, de tudo se servindo como escada para subir e chegar àquele que é todo desejável (LM 9,1)
Haurimos reflexões e ponderações de um Documento proposto pela Família Franciscana como orientação para comemoração deste centenário. Basicamente trata-se de recuperar um olhar contemplativo que saiba reconhecer a presença e a beleza do Criador que se revela em todas as criaturas.
Celebrar como Família Franciscana o centenário do Cântico das Criaturas nos leva a uma mudança radical em nossa relação com o criado que consiste em deixar de “possuí-lo” e tomar a decisão de salvar a casa comum. Por ocasião da passagem desse novo centenário temos ocasião de responder a perguntas como estas: “Como estou vivendo com relação às outras criaturas? Como um dominador que resolve fazer com elas o que bem entende? Como um consumidor que vê nelas oportunidade para conseguir vantagens? Ou como um irmão que se detém diante da criação, admira sua beleza e cuida de respeitar seu vigor? Estamos diante de um desafio antropológico e ecológico que determinará o futuro de nossa Mãe e Irmã Terra. Somos convidados a propor novamente à sociedade contemporânea “a linguagem da fraternidade e da beleza no relacionamento com o mundo” (cf. LS 11).
Uma descrição do propósito de Francisco de compor o Cântico encontramos na Legenda Perusina: “Eu devo, portanto, viver com toda alegria nas minhas enfermidades e tribulações, confortado no Senhor; e dar graças a Deus Pai, a Seu único Filho Jesus Cristo e ao Espírito Santo. Porquanto, Deus deu-me tal graça e bênção que se dignou, na sua misericórdia, certificar-me a mim, seu pobre e indigno servo, vivendo ainda neste mundo, de que participaria de seu Reino. Por isso eu quero em seu louvor, para minha consolação e edificação do próximo, compor um novo Louvor do Senhor, pelas criaturas que nos servem todos os dias, e sem as quais não podíamos viver (…). Sentou-se, concentrado por momentos, depois entoou: “Altíssimo, Onipotente, Bom Senhor”. Para estas palavras compôs a melodia que ensinou aos companheiros. Com o coração inundado de tanta doçura e consolação, queria mandar chamar Frei Pacífico, conhecido no mundo por “rei dos versos”, hábil, mestre de coro; e que escolhesse alguns frades piedosos e observantes que fossem pelo mundo a pregar e a cantar os louvores e Deus” (LegPer 43).
Voltamos ao Documento exarado pela Família Franciscana em suas orientações para a celebração do presente jubileu. O tema que celebramos tem tudo a ver com as preocupações do Papa Francisco expressas na Laudato Si’: “A crise ecológica atual nos revela que “o ambiente humano e o ambiente natural degrada-se em conjunto” (LS 48). Uma tal consciência nos permite compreender que o meio humano e o meio natural se protegem e juntos embelezam, da mesma maneira. Cuidar da casa comum sem cuidar da casa interior, nosso coração, não é o caminho adequado. Necessário se faz uma conversão que seja ecológica e integral ao mesmo tempo, porque a crise ecológica é apelo a uma conversão interior (LS 217). Na verdade, a última estrofe do Cântico nos lembra de que somente os que possuem um coração livre, capaz de estancar a lógica do ódio e da vingança, através do perdão, podem tornar-se instrumentos de reconciliação e de concórdia, profecia da fraternidade como Francisco mesmo vivera”, numa perfeita harmonia com Deus, com os outros, com a natureza e consigo mesmo” (LS 10)
Aprofundando
Cf. Introdução ao Cântico p. 54-56
O Cântico não precisa de apresentações. Por seu conteúdo e forma poética, escrito no dialeto da Úmbria faz parte da literatura mundial. Da sua autenticidade nunca se duvidou, atestada por Celano e pela tradição manuscrita. Como já aludimos a autoria do Cântico vem atestada pela Legenda Perusina. Como acertadamente compara Celano é “deveras um novo cântico dos três jovens na fornalha ardente”. A fornalha ardente de seus padecimentos.
Uma palavra sobre alguns traços principais. Em primeiro lugar a expressão “Mi Signore”. É repetida nove vezes. O seu Senhor é de fato o centro e objeto de todo o cântico. E que encanto comovedor naquele pronome “mi”, “Mi Signore”. Depois o sentimento de fraternidade. Convidar as criaturas a louvar o Criador é tema comum nos salmos. Original é o chamar-lhes enternecidamente de irmãs. Outra nota: a presença de Cristo. Todo o canto é um vibrar de gratidão. A grandeza, porém, dessa gratidão não resulta só dos benefícios que as criaturas proporcionam ao homem, mas do fato sobre elas se projetar o fulgor do dom maior que Deus nos fez: o dom de seu próprio Filho. Outra nota ainda: o realismo otimista que ilumina todas as criaturas. Estas são preciosas e belas, não em virtude de qualquer simbolismo religioso, mas simplesmente por serem o que são: sol, estrelas, água, terra, fogo etc. Finalmente o perdão. O perdão é a forma de amor indispensável.
O Cântico das Criaturas não foi um eflúvio de poesia. Teve também uma intenção apostólica. Foi o sermão novo que o Santo mandou seus frades pregar pelo mundo inteiro, a conquistá-lo para o amor de Deus. Com exceção das duas últimas estrofes, acrescentadas mais tarde, nos últimos dias do Santo, o Cântico teria sido composto no inverno de 1224-1225.
Ao irem pelo mundo, Francisco queria que os irmãos fizessem assim: “… primeiro falaria ao povo o mais competente para a pregação; depois todos cantariam os Louvores do Senhor, como jograis de Deus. Acabado o cântico, o pregador diria ao povo: “Nós somos os jograis de Deus, e única recompensa que nós queremos é que leveis uma vida verdadeiramente penitente. Que são, na verdade, os servos de Deus senão jograis que procuram comover o coração dos homens até os levarem às alegrias do espírito. Ao falar assim de “servos de Deus”, tinha em mente os frades menores, postos ao serviço do povo para sua salvação” (LegPer, 43).
“No Cântico do Irmão Sol, de dulcíssima tonalidade, celebra-se uma pacificação cósmica que acontece junto com o louvor do Senhor. Em tempo posterior será acrescentado ao Cântico o louvor humano do perdão, do sofrimento e da morte do corpo. O canto foi composto para que os irmãos fossem pelo mundo a cantar e louvar o Senhor. Encontramos um Frei Francisco que canta depois de ter experimentado sofrimentos, tendo encontrado refúgio junto de São Damião, levanta-se ainda uma vez do leito, não para falar de suas fragilidades, mas para contar a parábola do imperador que dava seu reino a um servo. O reino que Francisco recebe de Deus consiste em suas enfermidades e tribulações como certificação que estava para alcançar o reino de Deus”.
Grado Giovanni Merlo,
Frate Francesco, Il Mulino, Bolonha, 2023, p. 120
fonte: Revista Paz e Bem